O desastre ambiental em Brumadinho era uma tragédia anunciada e seus efeitos poderiam ter sido, pelo menos, amenizados pela prevenção. Isso porque o acidente em Mariana não foi o primeiro e, antes dele, outros desastres, de menor repercussão, forneceram indícios claros do que estava por vir, se providências não fossem tomadas. Sentença proferida em janeiro de 2016, pela Vara do Trabalho de Ouro Preto, em ação de indenização ajuizada por vítima do rompimento de barragem da mineradora Herculano, ocorrido em Itabirito no ano de 2014, já alertava para a possibilidade de novos acidentes envolvendo barragens de mineradoras no Estado.
Diante das inúmeras irregularidades comprovadas em Itabirito, a juíza titular da VT de Ouro Preto, Graça Maria Borges de Freitas, determinou que diversos órgãos estaduais e federais fossem oficiados da sentença para a implementação de medidas preventivas, como ações de fiscalização e de licenciamento ambiental, em outras barragens do estado. A tragédia de Mariana, ocorrida pouco tempo antes, em novembro de 2015, ampliava ainda mais a trajetória desse tipo de desastre em Minas Gerais.
Para proteger trabalhadores de áreas de barragem, a juíza determinou que fosse oficiada a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho. Também foram acionados os órgãos de chefia do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual e os representantes desse órgão em todas as comarcas abrangidas na jurisdição da Vara do Trabalho de Ouro Preto, diante do grande número de mineradoras que atuavam na região. No entendimento da magistrada, medidas estruturais poderiam ser necessárias em outras barragens para evitar novos acidentes.
Imediatamente após a publicação da decisão – e antes mesmo do seu trânsito em julgado - a juíza Graça Maria Borges determinou que a sentença fosse encaminhada a todos os órgãos ambientais do país, como Agência Nacional das Águas-ANA, Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA, IBAMA, Conselho Estadual de Política Ambiental-COPAM, Comitê Gestor de Fiscalização Ambiental Integrada-CGFAI, Fundação Estadual do Meio Ambiente-FEAM, Instituto Mineiro de Gestão de Águas-IGAM, Departamento Nacional de Produção Mineral-DNPM (atual Agência Nacional de Mineração-ANM), diante da necessidade de aperfeiçoar o sistema de autorização, fiscalização e controle da atividade de mineração. Ela entendeu necessária e útil a medida, já que o documento poderia servir para subsidiar os estudos sobre modelos de barragem mais adequados e seguros que as do tipo “a montante”, considerando os impactos ambientais, os riscos de morte de trabalhadores, habitantes e ribeirinhos e o direito fundamental à água reconhecido pela ONU.
Para a julgadora, o tema deveria ser tratado pelas autoridades com mais rigor e planos de fiscalização precisam ser traçados com urgência: “Somente na região metropolitana de Belo Horizonte, nos últimos cinco anos, houve rompimento de Barragens de Mineradoras nas cidades de Nova Lima, Itabirito e Mariana, fatos públicos e notórios, sendo o caso mais recente, ocorrido em novembro de 2015, também na jurisdição desta Vara, causador de ainda maior impacto social e ambiental, o que faz com que o tema tenha que ser tratado pelas diversas autoridades responsáveis com o rigor necessário para tentar evitar novas futuras tragédias”, alertou.
A boa notícia é que, após esses fatos, a ação ajuizada pelo Ministério Público Estadual, no final de 2016, teve liminar concedida, proibindo esse tipo de barragem pelo método “a montante” - proibição essa em vigor ainda hoje. A ANM também editou norma proibindo barragens a montante, dando prazo de até 2019 para o descomissionamento das ainda existentes.
Medidas preventivas: competência - Na decisão, a magistrada destacou ainda que o Ministério Público do Trabalho é legitimado a atuar na questão preventiva e a Justiça do Trabalho é competente em eventuais ações dessa natureza, no sentido de evitar mortes de trabalhadores em locais de risco que vierem a ser identificados nas diversas barragens existentes na região. “O Ministério do Trabalho também é competente para interditar preventivamente locais de trabalho geradores de risco, fatores que devem ser analisados por esses órgãos para traçar os planos futuros de fiscalização do setor”, frisou.
O caso Herculano - O rompimento da barragem na Mina do Sapecado de Itabirito, controlada pela mineradora Herculano, aconteceu em 10 de setembro de 2014. O acidente matou quatro pessoas, por soterramento (três mortos e um desaparecido) , e causou uma série de danos ambientais, já que os rejeitos atingiram cursos d’água da região. A descrição do acidente indica que os trabalhadores vitimados estavam trabalhando em atividades de melhoria da drenagem do local quando ocorreu deslizamento de terra, aparentemente proveniente das baias de decantação situadas acima do local onde eles exerciam suas atividades.
O relatório técnico produzido antes da ruptura da barragem relata as irregularidades decorrentes da infiltração e ou vazamento de água na barragem de rejeitos B3, estabelecendo o prazo de um dia para correção dos problemas apresentados, a fim de manter a meta de acidente zero – prazo esse descumprido.
Ao analisar os dados, relatórios e documentos juntados, a julgadora traçou algumas conclusões sobre o processo que acabou levando à ruptura da barragem:
- A Barragem de rejeitos B1 estava com sua capacidade completamente saturada, o que levou a empresa a construir a Barragem B4, barragem esta que sofreu um incidente (vórtex) que drenou a água nela depositada impedindo a sua utilização, motivo pelo qual a empresa passou a depositar os rejeitos de minério em baias de decantação localizadas a montante da barragem B1;
- a deposição de material pesado sobre a região e o tráfico intenso de equipamentos e máquinas pesadas levou a água a percolar (fluir, filtrar) no solo procurando uma saída;
- a falta de instrumentos de monitoramento do lençol freático no talude de contenção das baias de decantação levou o empregador a não observar que a água estava indo em direção ao talude;
- a água encontrou menor resistência para sair no talude que estava sendo escavado;
- apesar de todas as evidências de que a água estava minando no talude escavado e que o local estava em risco iminente de romper, a empresa desconsiderou os avisos e manteve os trabalhadores laborando no local.
Em um dos relatórios anexados ao processo consta a sugestão de que seja realizada uma inspeção técnica no local por profissional legalmente habilitado e qualificado para sanar todas as possíveis eventualidades no decorrer da atividade, evitando assim quaisquer acidentes de trabalho. O documento ressalta que, se havia vazios ou cavidades no terreno em que a barragem foi construída, o rompimento do teto dessas cavernas não pode ser atribuído a fatores aleatórios à responsabilidade da empresa, pois todos eles deveriam ter sido considerados quando da escolha do local da construção da barragem. As conclusões desse relatório recomendam o aprofundamento dos estudos geológicos, a segurança das estruturas existentes e a recuperação dos ecossistemas afetados, o que indica a persistência de risco no local mesmo depois do rompimento da barragem.
Análises do acidente, realizadas pelo Ministério do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, também foram registradas na sentença, identificando o descumprimento de diversas normas técnicas. (Veja a íntegra da decisão para mais detalhes. Clique aqui) “Não há, portanto, como a reclamada alegar inexistência de culpa se descumpriu todas as recomendações do relatório para a realização da obra, não obteve licença ambiental para construção das baias da barragem B1 e desconsiderou todos os avisos dos trabalhadores e do setor de segurança da empresa acerca da presença de água no talude e do risco de rompimento da barragem”, concluiu a magistrada, condenando a mineradora ao pagamento das indenizações pedidas na ação.
A condenação - A empresa foi condenada nesse processo ao pagamento de R$ 600 mil em danos morais para os pais, a filha e três irmãos de uma das vítimas, um pai de família que morreu soterrado pela lama. Indenização por danos materiais também foi determinada para os pais e a filha do trabalhador. A fixação do valor levou em conta a gravidade da lesão, o grau de culpa, a condição econômica das partes e os limites do pedido, visando ainda à finalidade pedagógica de evitar a repetição da conduta.
“Toda essa prova, aliada à repercussão decorrente do rompimento de barragem de rejeitos de outra empresa na mesma jurisdição, com ainda mais danos ambientais e mais trabalhadores vitimados, não pode ser desconsiderada pelas autoridades responsáveis”, alertou a juíza, determinando, na própria decisão, o envio de ofícios aos órgãos competentes para que medidas preventivas de eventos semelhantes fossem tomadas em todo o sistema de fiscalização e licenciamento ambiental da mineração no Estado.
Após a decisão, as partes entraram em acordo para pagamento das indenizações, pondo fim ao processo, vez que todos os valores já foram quitados.
Outras condenações – A Herculano Mineração Ltda. foi condenada em outras ações movidas por trabalhadores ou parentes de trabalhadores, vítimas da ruptura da barragem. Veja no quadro:
Pje: 0003087-54.2014.5.03.0069 - Data da sentença: 24/08/2016
Resultado: Condenação em danos morais R$300 mil reais e danos materiais R$ 1 milhão de reais. Houve recurso ordinário (RO), cuja decisão consta como documento restrito às partes, e agora o processo segue para o TST em Recurso de Revista.
Pje 0011147-74.2018.5.03.0069 – Data: 22/02/2019
Resultado: Acordo firmado no dia 22 de fevereiro de 2019 para pagamento da indenização de R$300 mil reais, em 12 parcelas.
Lição aprendida? – Após o acidente e a condenação, e levando em conta vários estudos técnicos que contraindicaram as barragens a montante, a mineradora Herculano informou ter modificado o seu sistema de exploração de minério. No último dia 22 de fevereiro, após audiência em outro processo na VT de Ouro Preto, o preposto da empresa apresentou reportagem demonstrando que a mineradora passou a adotar, em seus campos de exploração de minério, um sistema de filtragem de rejeitos que possibilita a disposição destes em pilhas, conforme informado, com baixíssimo teor de umidade.
Outro compromisso assumido pela Herculano perante órgãos ambientas foi o descomissionamento das barragens de rejeitos ainda existentes. Segundo divulgado pela mineradora, atualmente está sendo descomissionada a barragem B1 e o plano contempla o descomissionamento da barragem B4.
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