Por uma outra reforma trabalhista
*Clemente Ganz Lúcio
A
proposta de reforma trabalhista que tramita no Congresso Nacional em
alta velocidade impede o debate necessário sobre o sistema de relações
de trabalho no Brasil. Há consenso de que é preciso adequar o atual
sistema às profundas transformações do mundo do trabalho, mas o modelo
proposto está longe de ser unanimidade. Apesar da pressa que
parlamentares têm para aprovar essa proposta, é possível afirmar que dá
para construir uma outra, na qual haja convergência, prevendo um novo
sistema de relações de trabalho centrado na negociação coletiva, com
transição pactuada.
Um
sistema de relações de trabalho e de direito laboral normatiza e regula
a relação entre trabalhador e empregador, trata conflitos, define
direitos trabalhistas, tem impacto decisivo sobre a produtividade, além
de determinar a partilha dos resultados da produção. Assim, pode
alavancar processos civilizatórios, cujos impactos influenciarão o papel
do Estado, a economia e a sociedade como um todo. Trata-se de uma
construção social e histórica que, ao organizar as relações de trabalho,
é responsável, em grande medida, pela coesão da sociedade.
Transformar
um sistema de relações de trabalho exige um compromisso coletivo sobre
os objetivos e resultados esperados com a mudança, bem como com o
processo de transição para o novo. A avaliação dos múltiplos impactos
sociais e trabalhistas é fundamental. O consenso gerado pelo diálogo
também deve prever monitoramento de resultado e correção de desvios.
Um
sistema de relações de trabalho organizado a partir da negociação
coletiva requer sujeitos coletivos que efetivamente representem os
interesses das partes. No centro da concepção desse sistema estão a
criação e a manutenção desses sujeitos e instituições, que atuarão sobre
um conflito permanente pela repartição da renda e da riqueza geradas
pela produção e pelo trabalho, e darão soluções, sempre parciais e
provisórias, comuns a todo regime democrático.
No
estado democrático e de direito, o sujeito coletivo que representa os
trabalhadores são os sindicatos, que precisam ter os instrumentos
adequados para conduzir a negociação em condições de equilíbrio de
forças com o poder econômico. Estrutura, organização, financiamento,
acesso à informação, incentivo ao diálogo, mecanismos de solução
voluntária e ágil de conflitos, instrumentos de pactuação do acordado,
bem como garantia do cumprimento do acordo são algumas das condições que
favorecem o sistema de relações de trabalho baseado na negociação.
A
abrangência dos acordos, ou seja, quais trabalhadores serão
beneficiados pela negociação, é uma escolha fundamental, pois terá
repercussão sobre a organização e o financiamento sindical. Um sistema
baseado na negociação coletiva deve garantir processos negociais do
local de trabalho até o nível nacional (empresa, categoria, setor).
A
relação complementar e harmônica entre a legislação trabalhista e o
negociado e o papel da Justiça do Trabalho para mediação, arbitragem e
solução de conflito também são partes essenciais do novo sistema.
No
caso brasileiro, o sistema deve ainda considerar as profundas
desigualdades de condições entre trabalhadores e empresas, o que tem
impactos sobre as condições de trabalho e a capacidade real para gerar
proteção laboral. A informalidade é a situação limite que expressa essa
desigualdade e precisa ser enfrentada e superada.
O
combate às práticas de precarização das condições de trabalho, de
jornadas excessivas, de atitudes antissindicais, entre outros aspectos,
devem fazer parte do desenho de um sistema de relações de trabalho que
valorize a negociação.
O
sistema deve também gerar compromissos com o desenvolvimento econômico
das empresas e a repartição de resultados. Desenvolvimento é sinônimo de
incremento/repartição da produtividade, que é fruto da complexa
combinação entre o investimento na qualificação do trabalhador, a
qualidade das condições dos postos de trabalho, a tecnologia empregada
no processo de produção, entre outros fatores internos e externos à
empresa ou organização. Para que seja efetivo, é preciso que haja
instrumentos que atuem na perspectiva da pactuação de longos processos
de mudança produtiva e de distribuição equitativa dos resultados.
Essas
são algumas questões a serem consideradas no desenho das mudanças do
sistema de relações de trabalho. Tudo isso evidencia a complexidade e
repercussão econômica, política, social e cultural que as alterações
podem e devem provocar. Por isso mesmo, o desenho normativo do novo
sistema deve ser resultado de cuidadoso processo de reflexão e diálogo
social.
Uma
reforma deve buscar construir uma nova cultura política nas relações
laborais e, por isso mesmo, ser construída no espaço indelegável do
diálogo social e de ampla negociação que inclua todos os agentes
econômicos e políticos. Essa construção deve garantir compromissos com o
novo modelo, capazes de conduzir a transição e gerar confiança para
enfrentar as incertezas geradas pela mudança.
O
sucesso de todo esse processo dependerá, em grande parte, da estratégia
de transição, que precisa incentivar a adesão e a experimentação,
promovendo e divulgando as boas práticas.
Efetivamente,
todos esses elementos de conteúdo e processo não estão presentes no
projeto de reforma trabalhista apressadamente aprovado pela Câmara e
agora em análise no Senado. Ao contrário, o processo de mudança em curso
cria derrotados, promove intencionalmente desequilíbrios na
representação, inibe e impede a ação dos sindicatos, subtrai direitos e
desvirtua o acesso à Justiça do Trabalho. Construído fora do espaço do
diálogo social, o sistema que emerge dessa reforma acirrará os
conflitos, aumentará a desconfiança, fragilizará compromissos e trará
mais insegurança. Esse é um projeto de um país que está andando para
trás.
*Clemente Ganz Lúcio é Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e do Grupo Reindustrialização
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