Por Cirilo Tissot, médico psiquiatra especialista em dependência química e diretor técnico de Clínica
As
recentes ações das autoridades de saúde na questão do consumo de crack
na cidade de São Paulo reascendem as discussões sobre as medidas
adotadas na assistência médica de pessoas com dependência química.
Numa
perspectiva estritamente clínica dos fatos, o ponto chave é a
disposição conjunta da prefeitura e do estado em assumir que o
problema existe e está sob sua responsabilidade a aplicação de soluções.
E isto não depende dos incidentes de segurança pública responsáveis
pelas ações que tentam resgatar a ordem numa região da cidade.
Aqui, o foco não é a análise das ações estatais, mas o esclarecimento de
que todo e qualquer esforço da administração pública ou mesmo de entidades privadas devem considerar as disposições legais e protocolos médicos.
A
gestão pública, ao longo dos anos, já vinha cuidando do conjunto de
cidadãos em estado permanente de adição a drogas na área com protocolos
médicos e sociais aplicados ao conjunto de cidadãos em estado permanente
de adição a drogas na região. Alguns resultados destas medidas,
possivelmente, estão aquém do desejável e geraram outros problemas que
põem em risco a vida dos usuários de crack. Portanto, como em qualquer
tratamento, chega-se ao estágio em que se faz necessária a adoção de
medidas mais firmes, previstas nos protocolos médicos e na
legislação pertinente. Entre elas, as internações voluntária,
involuntária e compulsória. Todas dispostas nos procedimentos médicos e
na lei brasileira.
Nas
relações privadas, cabe aos médicos avaliar a situação do paciente
diante do tratamento e expor à família a necessidade da medida de
internação, inclusive a internação involuntária e compulsória. Na esfera
pública, a mesma missão cabe aos responsáveis pela saúde pública. Numa
interpretação bem ampla, o direito de consumir drogas até à morte dentro
de sua casa, não se espelha na rua, à frente de todos. Pior, ainda mais
quando psiquiatras e demais conhecedores do tema têm plena
ciência da profunda perda de autocontrole que o ser humano atinge nas
condições de consumo ininterrupto de drogas.
A
questão do tratamento de drogas está diretamente ligada à uma visão de
suicídio e eutanásia em detrimento de tentar manter a vida ao máximo
custo. Feitas estas considerações, é importante termos muito
claro os cinco desafios que os profissionais da saúde envolvidos para lidar com o tratamento em internações compulsórias terão pela frente para obterem sucesso na iniciativa.
Primeiro,
tempo para uma mínima desintoxicação orgânica, que numa visão mais
comum duraria cerca de 40 dias. Mas, a ciência tem demonstrado que as
grandes mudanças e efeitos no cérebro humano ocorreriam em cerca de três
meses de abstinência e isto, certamente, envolve consequências
claras da vontade do indivíduo sobre si. A partir de
recursos para cuidar dos efeitos decorrentes da ausência da droga,
este período é essencial para o paciente recuperar o mínimo domínio da
cognição para saber quem já foi, quem é agora e que pode escolher como
será seu futuro. Portanto, a questão importante será a capacidade do
paciente em, ao desenvolver a cognição, estabelecer um pensamento
crítico sobre a condição de sua doença.
Segundo, acesso a terapias, de forma contínua, que permitam uma mínima reordenação social. Em verdade,
ninguém para de usar drogas pelos problemas decorrentes do vício, mas
sim por acreditar que a vida será certamente melhor sem o consumo
de drogas ou álcool. Logo, a questão está ligada diretamente aos valores
que permitem ao dependente químico enxergar uma vida mais satisfatória.
Terceiro,
ter-se consciência de que a compulsão que faz alguém tornar-se adicto
a drogas passa muito longe de tragédias pessoais. Na verdade, está
colado numa realidade comprovada por experiências clínicas: o consumo
de drogas é o encontro com o prazer imediato. Um estágio de nirvana
permanente. A busca por um estado de euforia sem fim.
Quarto, os pacientes
poderão sofrer recaídas num período dentro dos próximos seis meses a
partir do momento em que tiveram a proposta de parar o consumo de
substâncias químicas. Não serão todos que terão recaídas, mas a
probabilidade daqueles que recaem já nos seis primeiros meses é de 75%.
Quinto, o recuperado
do vício precisara tornar-se um vigilante de si mesmo. Ter acesso a
tratamento psicológico capaz de lhe mostrar a importância de se afastar
do ambiente que lhe encaminhou ao vício. Muitas vezes isso significa se
afastar de coisas que vão além das ruas. Compreende estar à distância
dos amigos e, às vezes, da própria família.
Diante
dos estímulos da vida, uma pessoa pode encontrar dificuldades de
responder de forma satisfatória aos obstáculos. O elemento fundamental
será a postura que adotar para ter comportamentos
construtivos em detrimento da busca por euforia, excitação ou
anestesiamento dessas dificuldades a todo custo. Independentemente do
tamanho do desafio e de sua intensidade, o tempo, a condição mais
importante no tratamento da dependência química, é necessário. Pois é
preciso de tempo para realizar todas essas transformações, bem como o
imprescindível apoio dos membros da família, da sociedade, dos meios de saúde, para poder trazer essas pessoas engajadas em sair da Cracolândia.
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